sexta-feira, 26 de agosto de 2011

MANSOA DOS BONS VELHOS TEMPOS

Sempre que havia jogos do Campeonato Nacional, o restaurante de Só Zé enchia de fregueses. O meu amigo Alberto do "Comité de Estado" encheu-me a barriguinha muita vez aí. De resto, nos anos de fome da década de setenta do Século XX, o restaurante confortou muitos estómagos com os seus pães pequenos. Era um sonho comer nesse espaço. Como era um sonho fazer compras na loja de Nhu Quinzinho, na praça.
A praça emprestava à cidade um certo glamour, com as suas lojas recheadas de produtos, discoteca "Bona Gosta" e o Cine Club " Os Balantas".
Havia filmes para todos os gostos e feitios: fitas indianas do Bollywood (como o "Caminho para a Felicidade", emocionaram-nos até às lágrimas); Cowboys (os famosos Bud Spencer e Trinitá); o Charleot, que transformou muitos adolescentes em palhaços a tempo inteiro; o bonito e valente Sandokan; o Tarzan; o Dragão...
Ver os cartazes dos filmes tornara-se um must. Os nossos corações palpitavam descompassadamente de tanta excitação, de êxtase.

O nosso problema (meu e dos meus primos Aquiquiles e Tumbalumbé, este último, agora mais conhecido por "Di Noite" e "Munchen" ) era arranjar bilhetes.
Contudo, como a necessidade aguça sempre o engenho, lá conseguíamos ver as películas da nossa predilecção, fazendo recurso à imaginação e à criatividade:
Ora vendendo farelo, alumínio, ou pedindo aos mais velhos umas moedinhas, dizendo "Tio, Completan"; ora madrugando ao Cine Club, entrando pela janela, enfiando o corpo debaixo dos bancos compridos e aguardando que a sessão começasse. As formigas aproveitavam a ocasião para obter o seu quinhão, picando-nos.
Uma noite, Nhafrat, um dos mais carrascos funcionários do cinema, surpreendeu-nos, mal o filme começara, atrás da parede que servia de ecrã; foi uma debandada geral.

Os jogadores dos Balantas de Mansoa mais pareciam jogadores da Selecção dos Camarões. Eram uns verdadeiros touros da bola. Jaime Graça, avançado, era um super-sónico, corria que se fartava; Jaime Delgado, uma torre; Vicente, o guarda-redes, tomava conta da baliza com uma só mão... É escusado dizer que provocavam pequenos sismos sempre que se apresentavam para jogar a bola.
Aqui há anos, em Lisboa, um conterrâneo, pequenote que nem um bebé, disse-me que tinha jogado nos Balantas e na Selecção Nacional, fiquei parvo de assombro. Como era possível!

O mercado tinha um lindo e bem cuidado  jardim, onde se descansava, se rezava...
Mais tarde, passou a parque de diversões no tempo dos dinâmicos Fufu e Rui Lopes.
Hoje, não passa de um amontoado de casas, lojas, armazens...

Restaurante, cinema, jardim, parque de diversões... tudo passou à história; como passou à história a própria praça, arruinada, carcomida, fantasmagórica...
Fantasmagóricas estão também, para não destoar, as estradas Mansoa/Bissorã, Mansoa/Farim. Um horror.

MANSOA DOS BONS VELHOS TEMPOS chegou a ostentar um Carnaval inesquecível, com as criações de Totino, o homem dragão.
Tinha luz eléctrica, havia autoridade e o Campeonato Defeso era de luxo.  Equipas como Belém, autêntico Barça, de Mama Saliu, Sidico, Arlindo...; Anderlecht, de Nogueira, Sirifo Cassama...; Bairro Luanda, de Sarifo, Mama Saliu Bá, Mutaro Guba... Deixaram saudades que perduram no tempo.

O Mansoa de hoje, tem os seus encantos, só para citar um exemplo, tem a Rádio Sol Mansi, o Hospital... Ainda assim, não chega aos calcanhares do MANSOA DOS BONS VELHOS TEMPOS.

domingo, 14 de agosto de 2011

BINTA, A ENIGMÁTICA

Deambulando pelo palco à caça de uma presa, viu-a uma vez, e mais tarde, outra, sempre parada nalgum canto. Alta e esbelta. Não muito bonita. Ficou-lhe na retina.
Tarde da madrugada, estacou num dos lados do corredor para ver melhor as beldades que iam entrando e saindo. Não é que a vê a sair! Daí a puxá-la para si foi um passo.

- Olá, gira! Que linda que tu és!
- Obrigada!
- Não tem de quê!
- Não te importas de dizer-me o teu nome?
- Binta.
- E tu, como te chamas?
- Babadjema.
- Prazer.
- O prazer é todo meu.
- Não, não pode ser só teu.
Ao que riram com gosto.
- Adoraria ser teu amigo.
- Já somos.
- Já agora, o teu número de moba, se não te importas...
- antes dá-me o teu.

Dias volvidos, viu um toque no telélé.
Telefonou. E quem é que havia de ser?!
Era ela, a Binta dos seus sonhos.
"Céus! Abençada seja!" - Disse para os seus botões.
Trocaram algumas palavras triviais, como seria de esperar.

Voltou à carga dias depois, dessa feita para lhe convidar para o templo. Babadjema disse-lhe que ia ver.
Nesse dia, que era sabado, aí pelas 21 horas, contactou-a para combinarem. Ela disse-lhe que não tinha um chavo para apanhar táxi.
Tranquilizou-a, tendo prometido ir apanhá-la, desde que aparecesse sem amiga - virou moda em Bissau convidar uma e aparecerem, como de uma geração espontânea, muitas, tesas que nem uma criança de peito.
O encontro ficou para às 23 horas (não fosse pagar a tarifa das 24 horas), numa das "entradas" de Bairro Militar. Contava com a sua pontualidade.
Pouco antes da hora marcada, chegou ao local. Escusado será dizer que ficou estupefacto pela curta distância que separa esse local da discoteca. "Por que carga de água é que ela não se propôs ir a pé, poupando-me, assim, os míseros francos cfa de que disponho?!" disse de si para si.
Ligou. Ainda não estava a postos. Que aguardasse, que ia calçar-se.
Esperou, esperou "hoje e amanhã". Nada.
Às tantas, vislumbrou no escuro, duas badjudas. Pensou que fosse ela e uma amiga. Escondeu-se o mais que pôde, não fosse descoberto da espionagem a que, num repente, se viu forçado.

Pouco depois, a Binta mandou-lhe um liga-me.
Desconfiado que estava, não ligou.
Estudaria a situação. Entretanto, as duas raparigas se tinham sumido do seu campo visual.
Outro liga-me. Para não variar, não ligou.
Para se certificar, decidiu sair do seu esconderijo. Quando se preparava para atravessar a estrada... ouve uma voz femina chamar, voz que mais parecia vinda do fundo de um poço.
Mudou de rumo, seguindo em direcção da voz. A Binta estava à sua espera num canto escuríssimo da silva, o que o espantou de sobremaneira. " De que estaria a esconder-se?" Perguntou-se. Ao juntar-se-lhe, beijaram-se, em cumprimento da praxe, e saíram logo para a estrada. Chamaram um táxi. 
A discoteca estava à espera das duas aves nocturnas. Na verdade, quanto mais dessas houvesse melhor para os bolsos de um dos mais famosos espaços nocturos da capital guineense, se não o mais badalado de sempre, e também para as algibeiras das mulheres do termo, dos bares adjacentes, dos nares...

Ela avisou que não podiam descer juntos (provavelmente,  matutou Babadjema, por causa dos "bocassinhos"). Assim, apeou-se perto da curva que conduzia à Catedral, não sem antes de receber os 500 xof para o ingresso. Não podiam ser vistos juntos, pelos menos, cá fora.

Babadjema não entrou logo.Fez um compasso de espera para saborear a beleza presente e a chegar. Sabia bem, se sabia!!! "Ó meu Deus! Ó paraíso!", exclamava para os seus botões, sempre que passava uma imprópria para cardíacos. De facto, não dava para resistir. Que badjudas bonitas e boas prontas-a-comer!

A demora de Babadjema não agradou à Binta.
Assim, desatou a enviar liga-me atrás de liga-me.
Era chegada a hora de entrar. Juntou-se-lhe. Mais pareciam um feliz casalinho de namorados. Como as aparências enganam! Depois de terem saboreado, ela um fanta, e ele um vitamalte, nectar de sua predilecção, curtido, sentados, claro está, alguma música, a páginas tantas, disse que queria ligar a uma prima para a convidar para a desbunda. Para tanto precisava só e só de 500 xof.
Babadjema tentou fazer ouvidos moucos. Pois, não lhe agradava a ideia. Ela lá insistiu.
Que ligasse do seu telemóvel, dele Babadjema.
Que deixasse. Que já não era preciso. Bufou ela.
Mau sinal, profetizou Babadjema. Ficaram mudos e tensos durante um bom bocado. Havia que fazer qualquer coisa.
- A menina dança?
- Não, obrigado!

Mais mutismo e tensão no ar e nos dois corações.
Que fazer?! Logo com ele que gostava tanto de abanar o capacete...

Babadjema pede licença para se ausentar, apresentando um pretexto inaudível e irrepetitível, por confuso e sem nexo.
"Se ela não quer..." veio-lhe à ideia.
Era de partir para outra. E partiu mesmo.

Não tendo conseguido, voltou para junto dela com o rabo entre as pernas. A Binta não lhe ligou nenhuma.. Pudera!

Voltou a partir, decidido a não mais voltar para a enigmática.
Experimentou dançar sozinho, como aquecimento para voos mais altos. "começar com o pé esquerdo pode não constituir uma fatalidade. Nunca se sabe. A ver, vamos", animou-se.

Foi descoberto pouco depois. Não era difícil; uma torre vê-se à léguas de distância.
Exigiu do Babadjema outro fanta. Que fosse aguardar no seu cantinho o sumo. Acreditou.
Babadjema não fez caso.
Como não aparecesse com o nectar, saiu à sua procura.
Assim que Babadjema deu conta, escondeu-se.
Ela procurou, procurou... e nada. Desistiu.

Nesse interim, não é que aparece uma presa impossível de deixar para a concorrência!
Babadjema viu-se forçado a sair da toca. É avistado.

- Convidas-me e não tens dinheiro?! Era só o que mais faltava - Ataca a Binta.
- Dá-me dinheiro que quero ir para casa.
- Espera só um poucochinho! - Pede Babadjema.
- Não, não espero nada! Tenho de ir-me embora e já. Faz-se tarde.
- Já te disse para aguardares -Fingiu impacientar-se.
- Se não me dás agora o dinheiro, chamo os meus irmãos. Não te esqueças que sou do Bairro Militar.
- E daí?! Procurou armar-se em corajoso.
- Nós do Bairro Militar sabemos como ninguém tratar da saúde. E os meus manos não andam longe.

Que eram 500 xof para o Babadjema, apesar do seu salário de fome de alto funcionário público?! Salvar a pele afigurava-se a melhor política.
Por dá cá aquela palha, quantas pessoas não terão morrido nos últimos anos.
Logo emergiram do subconsciente do nosso herói imagens do assassinato selvático de um amigo seu.

Despachou-a.
Estava livre para novas aventuras.
De resto, não se saiu bem.

Ela continuou a cirandar pela discoteca. Quando o Babadjema se ia embora, viu-a, pela última vez, na parte exterior, com outro homem, toda enroscadinha como uma gata. Fez que não a viu e bazou para casa.
A noite correra mal, mas continuava vivo. Era o que mais importava. Até porque a Guiné, não obstante a sua mísera vida, é riquíssima em badjudas de cortar a repiração...

GLOSSÁRIO:

Badjuda - rapariga;
Mulheres do Termo - mulheres que vendem sandes, cervejas..., nas imediações da discoteca;
Nares - comerciantes mauritanianos;
Bocassinhos - a má-língua.

sábado, 13 de agosto de 2011

ASSÉDIO HOMOSSEXUAL

«Você nunca encontrará paz até que ouça o seu coração»,
 George Michael

Estou sentado num banco do jardim do Centro Comercial Babilónia, na Amadora, a cantarolar uma melodia  e a escrevê-la sobre o livro “O Caminho Menos Percorrido”, do psiquiatra norte-americano M. Scott Peck. Não é que surge, vindo de nenhures, um senhor na casa dos 60 anos e se simpatiza comigo! Sem cerimónias, senta-se ao meu lado; ou melhor, enrosca-se-me. Agarra a minha mão esquerda. Acaricia-a, vezes sem conta. “ Como se chama? O senhor é guineense? Mora aqui perto? É casado?”. Satisfaço-lhe a curiosidade. “Que anda a ler?”, volta à carga. Com uma mão segura o livro, fingindo interesse, e com a outra procura, sem mais delongas, o meu sexo. Isto, num jardim público, com gente a passar e tudo! “ O senhor é homossexual?”, atiro-lhe na cara. “Sou casado e tenho filhos. Mas, gosto de homens”. “Eu, não!” faço-lhe ver. “ Gosto é de mulheres… de certas mulheres”, remato. O homem lá teve de se ir embora, sorridente.
Esta história, ocorrida a 20 de Julho, faz-me lembrar  outras vividas em Lisboa:
 A caminho do Espaço B’Leza, para mais uma noite de “sabura” e “morabeza”, um carro verde encosta para me dar boleia. Desconfiado, ainda assim, acedo à oferta. A páginas tantas, convida-me para um café. Apercebendo-se de que não estava para aí virado, atreve-se, passando a mão, mais à mão, entre as minhas pernas. Chegados ao meu destino, vi-me e desejei-me para persuadir o senhor a deixar-me seguir o meu caminho. Dias volvidos, vi o mesmo carro, no Cais do Sodré, abordar um africano, provavelmente guineense, acabadinho de sair das obras …
 Por falar no Cais do Sodré, Estava eu, numa bela manhã, junto a um semáforo, à espera do verde para passar. Eis que se não quando, surge do nada, um senhor engravatado e todo janota, e mete comigo. Sem preâmbulos , dispara a matar: “ Vai uma rapidinha? Olhe, que eu pago”. “Francamente! Ao que isto chegou!”, digo aos meus botões.
Uma tarde também, na Cidade Universitária, um homem andou aí a cirandar, a ver, se me engatava.

Segundo os meus cálculos, este assédio dos “gays” teve, por assim dizer, a sua “génese”, em 1992 ou 93, nas Caldas da Rainha, quando um homem se deu ao trabalho de me perseguir por tudo quanto era sítio. Agora, pergunto-me: seria mesmo um “gay”? Ou seria, antes um tresloucado “normal”?

Procuro compreender os “gays”. Pois, a complexidade da vida recomenda-nos tolerância e respeito escrupuloso pela diferença.
Por Selo Djaló